13 de junho de 2011

O universo num mixtape

“Gravar uma compilação em fita, assim como terminar um namoro, é difícil de se fazer e demora muito mais tempo do que parece. Você começa com algo impactante, para chamar atenção. Então eleva para um nível acima, mas você não quer gastar sua munição de uma vez, então você tem que esfriar as coisas. Há um monte de regras”

De fato, essa frase do Rob Gordon, protagonista de Alta Fidelidade, deveria ser uma espécie de mantra dos produtores musicais do mundo inteiro, mas parece que nem sempre as coisas saem como deveriam. Quando eu tinha meus 12 anos, lá no final do século passado, eu já sacava dessas regras quase que instintivamente. Naquele tempo não havia MP3 player ou qualquer dessas modernidades contemporâneas. A saída para quem queria ouvir um som baixado na internet era gravar em fita e ouvir no old but gold walkman (pelo menos, era essa a minha única opção). Naquela época, meu pai acoplou a saída de áudio do computador na entrada auxiliar de um tocador de fitas antigo dos anos 70, que estava guardado em algum canto do armário. Era um baita trambolho, todo prateado, com diversos botões e alavancas, um belíssimo medidor de espectro e soltava um barulho insano toda vez que a fita começava a rodar, mas acima de tudo era funcional, e ainda fazia bem o trabalho e tinha um estilão meio vintage, então aquilo virou uma espécie de brinquedo para os dias de tédio.

Na verdade, era um trampo que exigia dedicação profunda e uma paciência zen. A primeira parte era mais complexa: achar as músicas certas para a compilação. Naquela época o Napster ainda não passava de um delírio, então caçar músicas de madrugada com uma conexão discada instável de 56 kbps não era tarefa para covardes. E cada música de 128 kbps demorava cerca de uma hora para baixar, e isso usando o matreiro Download Accelerator, que não passava de um placebo virtual. A segunda parte era mais fácil e consistia em montar uma playlist no Winamp.

Essa etapa, como dito no filme, dependia de algumas regras, embora naquela época fosse tudo na base da intuição. A primeira faixa tinha que ser boa, não necessariamente um hit, mas algo que seja direto, que mostre qualidade logo de cara. A música seguinte precisava manter o nível, podendo ser até um pouquinho pior, mas que acompanhe o ritmo da anterior. Em seguida, uma canção mais forte, algo digno de lado A, daquelas que provocam uma expectativa angustiante no ouvinte. A quarta faixa podia ser mais lenta, deliberadamente pra quebrar o ritmo, e a faixa seguinte aos poucos recomeçaria a levantar o astral novamente. A coisa segue por aí até por volta da oitava ou nona faixa, com um outro hit destruidor. A partir disso a coisa caminharia vagarosamente para o fim. Mas na canção de encerramento, o ideal seria uma música não muito agitada para não cortar o tesão de repente, nem muito lenta ao ponto de encher o saco e não ser ouvida até o fim. O tipo de confusão bipolar que deixe claro que o final está próximo, sendo um dos melhores exemplos o “Eclipse”, a música de encerramento de Dark Side of The Moon. Depois, era só gravar, virar o lado da fita e repetir o processo.

Alguns anos depois, com o advento dos gravadores de CD, a coisa melhorou de figura. Foi como sair do amadorismo e entrar na era do clube-empresa. O CD tinha uma porrada de vantagens: era rápido e fácil de gravar, não tinha esse lance de lado A e lado B e a qualidade de som era estupidamente melhor. Às vezes havia o incoveniente da mídia ser vagabunda demais e não gravar, mas isso era apenas um efeito colateral da pós-modernidade. O fato é que a essência do mixtape não mudou e isso é um lance importante de se destacar. Hoje estamos na cultura do shuffle, que cumpre muito bem o seu papel, tanto que também sou um adepto convicto. Mas penso que o shuffle funciona em um sistema diferente dos playlists: ele trabalha com o elemento surpresa. Por exemplo, que mente obscura pensaria em colocar Paulinho da Viola para tocar depois de Arcade Fire ou Broken Social Scene? Quase nenhuma, exceto os algorítmos frios dos chips de silício. E na maioria das vezes, isso funciona que é uma maravilha. Mas como contraponto, a sensação de infinitude do shuffle é exatamente o seu algoz, é a entropia em sua carga máxima. Por isso ele funciona melhor quando o ato de ouvir música está em segundo plano, como no ônibus, na fila da padaria, trabalhando, escrevendo um texto, e dificilmente se escuta até o fim.

Em compensação, a graça do playlist é que seu tempo restrito o torna uma obra completa, com começo, meio e fim, algo que parece ter algum sentido mesmo que na verdade não haja nenhum sentido ali. Por isso que, como disse Marcelo Costa, editor do Scream & Yell, “a melhor carta de amor que você pode escrever para alguém é uma mixtape”. Se há alguma coisa que o mixtape trouxe ao mundo além de novas possibilidades de iniciar relações amorosas, essa coisa foi um arsenal de metáforas.

2 de junho de 2011

Fleet Foxes e a longa e tortuosa estrada

Quando surgiu com seu álbum de estreia em 2008, o Fleet Foxes causou um belo frisson na crítica musical. O espectro do folk rondava a cena rock, mas ainda não havia surgido nada de diferente até então, ou mesmo qualquer coisa que não soasse como Bob Dylan ou Nick Drake. Mas a frota de Robin Pecknold rapidamente começou a fazer a cabeça dos críticos mais espertos, com um estilo que era uma mistura de Beach Boys e Crosby, Stills, Nash & Young, com um quê de folk celta e pop barroco. Enfim, uma coisa totalmente estranha. Se alguém estava atrás de algo novo no rock alternativo era só mirar naqueles hippies barbudos que não havia como errar.

Três anos depois daquele baque inicial, o Fleet Foxes volta à campo com Helplessness Blues, certamente o melhor disco até agora (e o segundo, é verdade). Como não haveria de ser diferente, a sonoridade estranha da banda continua lá: a voz reverberada e hipnótica de Pecknold, os backing vocals compondo a harmonia da música – como naqueles “barbershop quartets” –, as melodias bem trabalhadas e o clima bucólico, místico e um tanto psicodélico em meio a tudo isso. Mas o som está agora mais melancólico, sério e maduro. É uma mudança quase imperceptível em uma primeira audição, mas não é difícil notar que a contemplação da natureza já não é mais o tema principal por aqui.

Isso fica óbvio logo nas primeiras palavras da primeira faixa, “Montezuma”: “So now I am older than my mother and father / When they had their daughter / Now what does that say about me”. “Oh man what I used to be”, completa Pecknold no refrão quase como um mantra, mostrando que a maturidade não apenas bateu à porta do rapaz de 25 anos, mas a esmurrou com toda a força do mundo.

Não é difícil entender sabendo o caminho tortuoso pelo qual Helplessness Blues passou até ser finalmente lançado. Em fevereiro de 2009, a banda se reuniu em um estúdio alugado para ensaiar novas músicas, mas as sessões não puderam ser utilizadas e eles perderam US$ 60 mil na brincadeira. Depois, o baterista e co-compositor Joshua Tilman saiu em turnê pela Europa e América do Norte entre 2009 e 2010 e as gravações tiveram que ser adiadas. Quando as coisas começaram a caminhar, em abril de 2010, Pecknold estava tão compenetrado no álbum que sua namorada decidiu dar um fim no relacionamento de cinco anos. E para finalizar, o disco que estava previsto para sair no segundo semestre do ano passado só foi lançado agora.




Portanto esqueça qualquer coisa mais pop como “Ragged Wood”, a faixa mais agitada do disco anterior. O momento não era propício. O que não quer dizer que o disco seja o fino da fossa. O som está cativante como nunca, as melodias continuam bem trabalhadas e o álbum parece muito mais coeso do que o anterior.

Se no disco de estreia as músicas seguiam como em uma montanha-russa com momentos de êxtase seguidos de calmaria pura, o que quebrava demais o ritmo, Helplessness Blues está mais equilibrado e melhor cadenciado, o que o torna o tipo de disco que é preferível ouvi-lo inteiro, como se fosse uma obra completa em que cada música é um capítulo distinto, a parte de um todo. Isso quer dizer que não há uma canção que consegue se sobressair com facilidade, embora não signifique que o álbum não tenha lá seus hits. Mas a questão é que o objetivo agora é outro. Pelo menos é o que pensava Pecknold, quando ele disse em entrevista ao Pitchfork em 2009 que queria fazer algo como Astral Weeks, o icônico disco de Van Morrison, “porque ele soa como se o álbum tivesse sido gravado em um universo de apenas seis horas”.

Se ele conseguiu ou não é difícil dizer, mas a evolução na construção das melodias é notável. Na faixa de abertura, “Montezuma”, não dá para sacar grandes mudanças em comparação com o álbum anterior ou com o EP Sun Giant, por isso ele é o mais perfeito cartão de visitas do Fleet Foxes, mostrando para quem não conhece qual é a deles.

A coisa começa a esquentar na segunda faixa, “Bedouin Dress”. Um riff no violino, uma marcação na bateria e um clima de felicidade fingida e não é preciso mais nada para fazer uma canção cativante.

A faixa seguinte “Sim Sala Bim” mostra uma jogada manjada da banda desde os tempos de Sun Giant: a música começa lenta, só com a voz de Pecknold acompanhada pelo violão, e aos poucos vai ganhando força e intensidade até atingir um ponto máximo que vai progressivamente diminuindo rumo ao fim. Esse roteiro se repete em diversas outras músicas do álbum, quase sempre com sucesso.

"The Plains/Bitter Dance", por exemplo, segue nessa toada, assim como a excelente faixa-título “Helplessness Blues”. Ela começa só no violão, passa a ficar cada vez mais rápida e novas vozes entram em cena, até o ponto que o bumbo da bateria explode e torna as coisas completamente épicas, com uma bela melodia que entra no coração. O coro faz com que os versos prolongados ao máximo ganhem contornos apoteóticos de uma maneira que só o Fleet Foxes poderia fazer sem parecer forçação de barra.

Outra faixa que merece destaque é "Lorelai", uma canção simples, simpática e triste. Já "The Shrine/An Argument" transparece uma certa raiva incontida que nunca antes tinha ouvido em outras músicas da banda, um épico catártico de oito minutos que termina em momentos de puro delírio experimentalista.

Fechando o álbum tem a minimalista "Blue Spotted Tail", que só conta com o violão e a voz de Pecknold, dessa vez sem eco, seguido da bela "Grown Ocean", uma música que finalmente exprime a felicidade em seus poros, uma visão otimista em meio ao caos mental, o momento de redenção de uma alma liberta de seus demônios.
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