“Gravar uma compilação em fita, assim como terminar um namoro, é difícil de se fazer e demora muito mais tempo do que parece. Você começa com algo impactante, para chamar atenção. Então eleva para um nível acima, mas você não quer gastar sua munição de uma vez, então você tem que esfriar as coisas. Há um monte de regras”
De fato, essa frase do Rob Gordon, protagonista de Alta Fidelidade, deveria ser uma espécie de mantra dos produtores musicais do mundo inteiro, mas parece que nem sempre as coisas saem como deveriam. Quando eu tinha meus 12 anos, lá no final do século passado, eu já sacava dessas regras quase que instintivamente. Naquele tempo não havia MP3 player ou qualquer dessas modernidades contemporâneas. A saída para quem queria ouvir um som baixado na internet era gravar em fita e ouvir no old but gold walkman (pelo menos, era essa a minha única opção). Naquela época, meu pai acoplou a saída de áudio do computador na entrada auxiliar de um tocador de fitas antigo dos anos 70, que estava guardado em algum canto do armário. Era um baita trambolho, todo prateado, com diversos botões e alavancas, um belíssimo medidor de espectro e soltava um barulho insano toda vez que a fita começava a rodar, mas acima de tudo era funcional, e ainda fazia bem o trabalho e tinha um estilão meio vintage, então aquilo virou uma espécie de brinquedo para os dias de tédio.
Na verdade, era um trampo que exigia dedicação profunda e uma paciência zen. A primeira parte era mais complexa: achar as músicas certas para a compilação. Naquela época o Napster ainda não passava de um delírio, então caçar músicas de madrugada com uma conexão discada instável de 56 kbps não era tarefa para covardes. E cada música de 128 kbps demorava cerca de uma hora para baixar, e isso usando o matreiro Download Accelerator, que não passava de um placebo virtual. A segunda parte era mais fácil e consistia em montar uma playlist no Winamp.
Essa etapa, como dito no filme, dependia de algumas regras, embora naquela época fosse tudo na base da intuição. A primeira faixa tinha que ser boa, não necessariamente um hit, mas algo que seja direto, que mostre qualidade logo de cara. A música seguinte precisava manter o nível, podendo ser até um pouquinho pior, mas que acompanhe o ritmo da anterior. Em seguida, uma canção mais forte, algo digno de lado A, daquelas que provocam uma expectativa angustiante no ouvinte. A quarta faixa podia ser mais lenta, deliberadamente pra quebrar o ritmo, e a faixa seguinte aos poucos recomeçaria a levantar o astral novamente. A coisa segue por aí até por volta da oitava ou nona faixa, com um outro hit destruidor. A partir disso a coisa caminharia vagarosamente para o fim. Mas na canção de encerramento, o ideal seria uma música não muito agitada para não cortar o tesão de repente, nem muito lenta ao ponto de encher o saco e não ser ouvida até o fim. O tipo de confusão bipolar que deixe claro que o final está próximo, sendo um dos melhores exemplos o “Eclipse”, a música de encerramento de Dark Side of The Moon. Depois, era só gravar, virar o lado da fita e repetir o processo.
Alguns anos depois, com o advento dos gravadores de CD, a coisa melhorou de figura. Foi como sair do amadorismo e entrar na era do clube-empresa. O CD tinha uma porrada de vantagens: era rápido e fácil de gravar, não tinha esse lance de lado A e lado B e a qualidade de som era estupidamente melhor. Às vezes havia o incoveniente da mídia ser vagabunda demais e não gravar, mas isso era apenas um efeito colateral da pós-modernidade. O fato é que a essência do mixtape não mudou e isso é um lance importante de se destacar. Hoje estamos na cultura do shuffle, que cumpre muito bem o seu papel, tanto que também sou um adepto convicto. Mas penso que o shuffle funciona em um sistema diferente dos playlists: ele trabalha com o elemento surpresa. Por exemplo, que mente obscura pensaria em colocar Paulinho da Viola para tocar depois de Arcade Fire ou Broken Social Scene? Quase nenhuma, exceto os algorítmos frios dos chips de silício. E na maioria das vezes, isso funciona que é uma maravilha. Mas como contraponto, a sensação de infinitude do shuffle é exatamente o seu algoz, é a entropia em sua carga máxima. Por isso ele funciona melhor quando o ato de ouvir música está em segundo plano, como no ônibus, na fila da padaria, trabalhando, escrevendo um texto, e dificilmente se escuta até o fim.
Em compensação, a graça do playlist é que seu tempo restrito o torna uma obra completa, com começo, meio e fim, algo que parece ter algum sentido mesmo que na verdade não haja nenhum sentido ali. Por isso que, como disse Marcelo Costa, editor do Scream & Yell, “a melhor carta de amor que você pode escrever para alguém é uma mixtape”. Se há alguma coisa que o mixtape trouxe ao mundo além de novas possibilidades de iniciar relações amorosas, essa coisa foi um arsenal de metáforas.
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