Em certo momento da vida, Milton Friedman, nobel de Economia e tudo o mais, teve a ideia de que o melhor para todos era o mercado ser liberal. Em outras palavras, acabar com esse papo do Estado botando o bedelho onde não é chamado. A economia deveria ser livre, assim como são as pessoas. É fato que essa não era uma ideia nova, Adam Smith já tinha concebido o mesmo com sua laissez-faire, a mão invisível do mercado. Mas os EUA tinham acabado de enfrentar umas das mais graves crises financeiras de sua história, o crash de 29, e só evitaram uma catástrofe por causa da intervenção estatal no melhor estilo da escola keynesiana. De qualquer maneira, a ideia começou a tomar corpo no começo da década de 80, quando Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, e Ronald Reagan, nos EUA, promoveram uma série de reformas liberalizantes, cortando gastos sociais, diminuindo os impostos e desregulamentando o mercado.
Um salto no tempo, e na década de 2000 ninguém mais questionava Friedman e o liberalismo econômico. Aliás, quem era contra era alcunhado “viúva do muro de Berlim”. A economia do mundo inteiro estava se modernizando, as empresas estavam mais eficientes e novas tecnologias surgiam a todo instante e se popularizavam. A internet era a prova viva de que a liberdade individual de cada um criava um bem comum a todos. Países que fizeram medidas macroeconômicas liberalizantes, como a Irlanda, surfavam na onda da bonança financeira. Só que uma hora o sonho acabou e a realidade pareceu desagradável demais.
A Islândia, um pequeno país europeu, com poucos recursos naturais e quase esquecido se não fosse a Björk e o Sigur Rós, de repente quebrou. Sua economia, baseada basicamente em serviços, entrou num colapso financeiro. Os três maiores bancos estavam com dívidas externas impagáveis, maiores que o PIB do país. Como o governo não regulou as movimentações financeiras, todo o tipo de negociata foi colocada na mesa. Mas a crise na Islândia foi só a ponta do iceberg, a primeira pedra do dominó a cair, e o pontapé inicial do documentário “Trabalho Interno”, do norte-americano Charles Ferguson, vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 2011.
Se foi merecido não sei, mas o fato é que bastante didático. Lembro que em um dos filmes do Zeitgeist é dito que o sistema financeiro é complexo por um bom motivo: se ninguém entende como ele funciona, ninguém vai contestá-lo. Mas “Trabalho Interno” mostra que o esquema financeiro é tão simples quanto o conto do vigário que os 171s aplicavam no centro de São Paulo. É tudo uma questão de parecer confiável, saber ludibriar a vítima e sair de fininho quando o estrago já tiver sido feito.
O esquema funcionava assim: 1) Desregulamentação do mercado 2) Criação de derivativos 3) ??? 4) Lucro fácil. Para o primeiro passo, só é necessário promover lobby com alguns politicos, incluindo o presidente da República, e fazê-los aprovar o fim de qualquer tipo de controle externo sobre o mercado financeiro. O segundo passo é mais complexo, mas vale a pena acompanhar.
Em uma situação normal, os bancos fazem empréstimos esperando que eles sejam pagos dentro do prazo estabelecido, sob pena do imóvel ser hipotecado. Pois bem, na época do boom imobiliário os bancos resolveram terceirizar as dívidas para maximizar os lucros. Em outras palavras, eles concediam empréstimos generosos e vendiam o valor a receber para bancos de investimento. Assim, eles não tinham que se preocupar em pegar a grana de volta, portanto quanto mais empréstimos eles fizessem mais grana entrava. E isso inclui a famosa categoria subprime, como são conhecidos aqueles não conseguem honrar suas dívidas.
No outro front, os bancos de investimentos pegavam essas dívidas, davam um nome legal (como CDO) e transformavam em derivativos – ou seja, novos investimentos. Daí vinham os bancos de classificação de risco, que analisavam esses produtos e davam uma boa nota, normalmente AAA, a mais alta que existe. Detalhe inusitado: os bancos de classificação de risco eram financiados pelos próprios bancos de investimento que criavam a coisa toda, algo como colocar o alcoolatra para cuidar da cerveja. A consequência disso tudo é que os produtos foram adquiridos por uma porrada de gente achando que aquilo era um belo negócio.
Até que chegou a bendita hora em que os subprimes não conseguiram arcar com suas dívidas. E sem grana, os investimentos não tem retorno. E investimento sem retorno é igual a lixo. E isso pegou muita gente de calças curtas. O que aconteceu depois todos sabem: o mercado financeiro perdeu credibilidade e os investimentos começaram a derreter como sorvete no verão, até o fatífico dia 15 de setembro de 2008, quando as ações da Lehman Brothers se reduziram a pó e levou o pânico aos investidores.
Karl Marx poderia estar rindo à toa, mas era lógico que quem pagaria a conta seriam os pobres proletários. E quem achava que Wall Street seria punida exemplarmente para as futuras gerações, mais um erro conceitual. Eles não só estão em liberdade quanto continuam usufruindo dos bônus generosos que ganhavam nos tempos de bonança. E aqueles que especularam para que os investimentos virassem água ganharam uma grana violenta. E isso é só uma pequena parte na extensa lista de injustiças.
O fato é que se a Justiça não quis fazer seu serviço, o cineasta pelo menos fez sua catarse. Como numa boa reportagem jornalística, ele deu chance para o outro lado se justificar, sempre, é claro, colocando-os contra a parede sempre que necessário. Os cínicos profissionais malufizaram com maestria, enquanto os mais fracos pareciam não domar a arte da mentira.
Lógico que chega uma hora que esse maniqueísmo todo torna-se questionável, do tipo “nós contra eles”, tão típico dos filmes do Michael Moore. E Fergurson chega ao ápice da apelação ao entrevistar uma cafetina que aliciava garotas para os executivos, em festas regadas a bebidas, drogas e fantasias sexuais malucas. Esse é o tipo de moralismo barato que faz sucesso na imprensa sensacionalista – e possivelmente o público adora – mas é desnecessário pintar um cara de devasso quando há outras coisas a debater.
Pode-se também questionar a edição do filme, mas aí já é um outro papo, pois a tal da objetividade jornalística é uma das maiores farsas da indústria. E na real, o que importa mesmo é o grande potencial de mind-blowing que o documentário consegue provocar mesmo em quem já tem alguma ideologia definida. Permanecer inerte é uma opção só para quem realmente não entendeu nada.
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