6 de dezembro de 2007

A primeira noite no Inferno - pt.3 (ou Como dizer a coisa certa na hora errada)

Com o fim do show do Vanguart, o espaço em frente ao palco voltou a ser uma enorme pista de dança, onde a meninada exibia toda sua saúde ao som de Kiss e Nirvana porém, sem estragar o penteado meticulosamente bem alinhado e os vestidos lascivos, que eram incompatíveis com o frio que fazia lá fora. "Bendito seja o Inferno", pensei.

Naquela altura, já passava das 4h e meu corpo estava em cacos. Talvez porque a cerveja long-neck de cinco mangos finalmente começou a bater dentro do meu organismo. Ou talvez porque estávamos bebendo ininterruptamente desde às 19h. Em condições assim, é natural que o cérebro funcione através de lapsos de consciência, e faça com que o corpo pare de responder por algum tempo.

Acho que meu cansaço era evidente. Enquanto os meus amigos saíram para tirar mais fotos do público, fiquei encostado em uma parede do lugar onde me tornei alvo de garrafadas no tornozelo. Em dado momento, aquela garota da foto surgiu novamente do nada e veio em minha direção. Ela me deu um chacoalhão e fez uma pausa, talvez esperando algum tipo de reação. Mas o fracasso era evidente: mal conseguia lembrar seu rosto, ainda mais assimilar o que estava acontecendo. Visivelmente abatida, ela foi em direção ao banheiro, de onde nunca mais voltou.

A segunda banda subiu ao palco. Seu nome era Identidade, do Rio Grande Sul, falou ao microfone o vocalista. A verdade é que eu já não estava com mais pique de acompanhar o show. Meus pensamentos voavam para longe daquele lugar acho que aqueles chacoalhões me fizeram mal. Mas digo que o som não é de todo o ruim, tem algo de dançante que lembra Franz Ferdinand porém com letras ruins, bem ao estilo anos 80. Mas nada que empolgasse tanto, já que foram poucos aqueles que permaneceram até o fim do show. Nós, por exemplo.

Pensava que a noite se encerrara ali, mas estava bastante equivocado. O último ato dessa tragicomédia ocorreu em um outro bar da Augusta, alcunhado Bar Bahia. O local era visivelmente insalubre, mas isso pouco importava. A minha fome estava insustentável, e logo pedi um x-salada. O fotógrafo me acompanhou e o outro elemento pediu uma cerveja.

O recinto onde estávamos não era dos piores já pisei em locais muito mais insanos do que aquele. Mas luxo certamente era um artigo dispensável. Ao fundo do bar, uma mesa de sinuca e um jukebox faziam a alegria de alguns. Lá também se encontrava uma máquina de karaokê, aparentemente desativada. A televisão, sintonizada no campeonato mundial masculino de vôlei, era o nosso único atrativo. Isso até ela chegar.

Vanessa apareceu de repente, querendo cigarro e alguma atenção. Era loira, estatura baixa, olhos claros e tinha uma voz embriagada. Ela exalava líbido pelos seus poros, e de sua boca saía as mais absurdas histórias. Dizia ela que era casada com um australiano e que suas amigas seguiram rumo semelhante, viajando com a gringalhada. Foi a única coisa com algum sentido lógico que consegui pescar na conversa.

Mas era o óbvio ululante: Vanessa é uma meretriz (o popular, mulher do pala aberto). Se não é, eu a aconselharia a mudar alguns trejeitos. Para começar, ela parecia ter uma fixação pelo Gilmar, um dos funcionários do local, que compreensivelmente tentava se esconder atrás do balcão. Além disso, ela se entrosava com qualquer homem que olhasse acidentalmente em sua direção. Foi o nosso caso.

Já estávamos na terceira garrafa de cerveja quando Vanessa começou a se abrir para a gente. No início, ela só repetia insistentemente "quero cantar, quero cantar", e balbuciava palavras aparentemente sem ligação sintáxica, como um Riobaldo da grande metrópole. Ela se esquivava de perguntas, como "com o que trabalhava?" e "o que gosta de fazer?", com uma divina retórica malufista. Beber e dançar foi o que ela respondeu, respectivamente.

Mas alguns copos depois, ela quase fez uma performance instantânea para a gente. Após ouvir uma música no jukebox que lhe assanhou, Vanessa ameaçou tirar sua camisa branca, toda surrada e muito larga para o seu corpo, e tentou realizar um legítimo slap dance, ao sentar no colo do nosso amigo. Logo senti que a coisa estava esquentando. Restava saber qual dos dois daria o bote.

Já passava das 5h30 e precisávamos ir embora. Me levantei para pagar a conta, enquanto os dois ficaram lá conversando com Vanessa. Esse movimento me custou caro. Isso porque, enquanto eu assistia o Gilmar lutando ferozmente contra a máquina do Visa Electron, um diálogo digno de filme B hollywoodiano rolava na mesa:
- E aí, tá a fim de dar uns pegas? - perguntou nosso seduzido parceiro à divina dama.
- Claro, isso é o que eu mais quero - disse ela, com cara de safada.
- E quantos que é?

Essa frase doeu em Vanessa.
- Tá me achando com cara de puta? - disse histérica.
- Não. Estou falando da grana para o motel - argumentou ele, tentando consertar a cagada.
- Isso é problema seu.

Depois de ser degradada em plena Augusta, ela abaixou a cabeça sobre a mesa, como quem chora copiosamente. Nesse instante, eu já tinha pago a conta e achava que aquilo era só um sintoma da bebedeira. Mas o fotógrafo logo confidenciou: "Depois dessa, achei que ela ia chamar o cafetão, que iria vir esfaquear a gente". Por sorte, nada de grave aconteceu.

Esse diálogo me fez pensar como as relações humanas estão em seu nível mais baixo na história. Acho que nem na era feudal as mulheres eram tão degradadas assim. Afinal, se ela queria dar uns amassos de graça, porque diabos alguém se oferece para pagar pelo serviço? Uma total falta de tato. A frase "o inferno somos nós" nunca fez tanto sentido como agora.

Um comentário:

Epifaníaco disse...

fantástico.

dificil encontrar relato tão bem detalhado e que mostra tantas facetas de tão diferentes grupos urbanos.
veneravel o pique de vcs, sinti inveja.
mas é triste como o preconceito se esconde, apesar de me parecer honestamente inocente.

esta de parabens
jah fui mais de uma vez no Inferno e não seria capaz de fazer um relato desses nem com todas as horas de bar que foram citadas.

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